"Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!"
Florbela Espanca

21 de julho de 2010

AS MULHERES NA SOCIEDADE CELTA

O que sempre me encanta nos mitos e na história dos celtas são os freqüentes relatos sobre mulheres ruivas, altas, tão lindas quanto valentes, urrando gritos de guerras num campo de batalha, bradando suas próprias espadas ao lado de e contra homens tão fortes quanto elas. Nas tribos celtas, as mulheres ocupavam posições tidas como essencialmente masculinas por civilizações vizinhas como a grega e romana. O fato de elas lutarem como guerreiras não anulava a beleza e muito menos a feminilidade da mulher celta. Ser guerreira era algo nobre, mas não impedia que esta mesma mulher fosse também sensual ou mãe, pelo contrário, a força e a delicadeza aliadas eram exatamente o seu diferencial, eram as características que faziam dela uma pessoa segura, intrépida e apaixonante.
Existem várias facetas, muitas vezes contrastantes, que coabitam o mesmo espírito de uma mulher celta. A história de Boudicca, rainha da tribo Iceni, comprova isso.
Com a morte de seu marido, o rei Prasutagus, Boudicca passa a chefiar sua tribo que não estava nem um pouco disposta a ceder ao domínio romano. Ao tentar resistir, Boudica é capturada, açoitada e ainda obrigada a presenciar suas duas filhas serem estupradas por uma porção considerável de soldados romanos. Dignamente, a rainha se retira dos domínios do inimigo com suas filhas jurando vingança. Com toda a fúria que somente uma mulher de espírito celta poderia ter, assumiu não só o controle dos Iceni, mas também da tribo vizinha, os Trinobantes. Juntos, varreram pelo menos dois povoados romanos na Grã Bretanha, Camulodunum (atual Colchester) e Londiniun (atual Londres). Os romanos só conseguiram vencer os destemidos guerreiros e guerreiras celtas após muitas batalhas sangrentas. Foram obrigados a criar novas estratégias e aumentar seus exércitos. A história registra que Boudicca preferiu a morte ao domínio romano e partiu para o outro mundo clamando por Andraste, a deusa celta invencível.
O conflito entre Boudicca e os romanos foi relatado em 2003 no filme “A rainha da era do bronze”. Uma excelente produção, mas infelizmente pouco conhecida pelo grande público no Brasil. Um conceito marcante e recorrente na cultura celta é a relação intrínseca entre a soberania da Terra representada pela rainha de um povo. Quando os soldados romanos humilharam Boudicca e suas filhas, não era somente a honra delas que estava sendo duramente ferida, mas a honra de cada Iceni. Agredir física ou moralmente uma rainha era o mesmo que manchar a soberania da Terra.
A história de Boudicca me fez perceber que o que alimentava a coragem e ousadia da mulher celta era justamente o respeito e a confiança que o povo tinha na figura feminina. Arrisco afirmar que ela só conquistou várias vitórias sob os romanos porque sua tribo se deixou liderar por suas palavras e estratégias de coragem. Nenhum de seus guerreiros hesitou em seguir uma mulher, como seria passível de acontecer em outras culturas já impregnadas de conceitos machistas. É fácil compreender a confiança que os celtas depositavam em suas guerreiras ao sabermos que muitas das deidades ligadas a guerra são femininas. A mais conhecida com certeza é deusa Morrighan, ou a Grande Rainha.
Podemos afirmar que muito mais do que uma deusa protetora de guerreiros e guerreiras, Morrighan era sua musa inspiradora. Isso soa um pouco estranho para nós, acostumados apenas com musas inspiradoras da arte, da música e da literatura. Retomando o que foi dito logo no início deste texto, temas aparentemente contraditórios se entrelaçavam e até mesmo se complementavam na cultura celta. Tendo isso em mente pescamos mais um ponto marcante entre os celtas: equilíbrio entre luz e sombra.
A partir daí fica mais fácil compreender porque a presença de Morrighan era garantida nos momentos que precediam as batalhas. Ela fazia suas aparições como uma exuberante mulher, armada com lanças e recitando poemas que desafiavam e incitavam os grandes guerreiros entre os Tuahta de Dannan a conquistar as vitórias absolutas. Arrisco dizer que Morrighan conferia uma certa beleza nestes momentos de pura tensão. Ao final dos confrontos, Morrighan também comparecia, porém assumia sua outra faceta, a de implacável Deusa da morte.
Ela adquiria a forma de um corvo para poder desfrutar da carne dos que haviam tombado sem fazer distinção entre corpos de inimigos ou aliados. Devorava ambos. Essa mesma Morrighan não hesita em fazer amor com Dagda, conhecido como o “Bom Deus” entre os celtas, após usar seus dotes proféticos para fornecer para ele importantes informações sobre uma batalha que ocorreria no dia seguinte. É importante dizer que o casal consuma o ato no vau de um rio tomado por corpos ensangüentados dos que morreriam no confronto do dia seguinte. Mais uma vez temas ilusoriamente opostos como o amor e a morte se unem.
A liberdade sexual não se restringia apenas às deusas, mas também às mortais celtas. Citando o autor clássico Diodorus Siculus: “elas geralmente cedem sua virgindade a outros e isso não lhes parece indigno; mas sentem-se ultrajadas quando algum homem recusa-se a aceitar seus favores”. Maeve, “aquela que intoxica”, era uma temida rainha na Irlanda. Ela própria disse para um de seus vários maridos que jamais se deitou com um homem sem que outro aguardasse nas sombras.
Com base nas Leis Brehon, conjunto de leis transmitidas oralmente na Irlanda, se uma mulher se sentisse insatisfeita sexualmente no casamento, poderia deixar a relação a qualquer momento. Costumo dizer que estamos alguns séculos atrasadas, pois só recentemente conquistamos essa liberdade e controle sobre nossas vidas conjugais e sexuais, e mesmo assim com várias ressalvas.
Mas não era somente durante as batalhas ou na cama que as mulheres celtas mostravam seu poder e força. Há vários relatos de autores clássicos sobre as druidas, ou druidesas. Assim como os druidas do sexo masculino, as druidesas exerciam não só a função de sacerdócio espiritual, como detinham também poderes jurídicos e conhecimentos mágicos de cura. Como bem definiu o autor clássico Pomponiu Mela, os druidas “são mestres em muitas artes”.
O respeito das mulheres celtas foi conquistado até mesmo pelos gregos e romanos que admiravam sua beleza, fertilidade e coragem. Termino este breve texto dizendo que hoje sinto sutilmente o espírito da mulher celta vibrando entre nós. Tenho que ser firme como um guerreira no trabalho, ou então fluente e convincente como uma poetiza numa reunião de negócios. Eficiente e mantenedora no meu lar. Quente e amável com meu marido. E tudo isso tem que caber dentro de uma só mulher.
fonte:http://www.druidismo.com.br/m_celtas-mulher.htm

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