"Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!"
Florbela Espanca

9 de setembro de 2011

PRAZERES PELA METADE (LEILA FERREIRA)

Não há nada que me deixe mais frustrada do que pedir sorvete de sobremesa, contar os minutos até ele chegar e aí ver o garçom colocar na minha frente uma bolinha minúscula do meu sorvete preferido ? Uma só.
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Quanto mais sofisticado o restaurante, menor a porção da sobremesa. Aí a vontade que dá é de passar numa loja de conveniência, comprar um litro de sorvete bem cremoso e saborear em casa com direito a repetir quantas vezes a gente quiser, sem pensar em calorias, boas maneiras ou moderação.
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O sorvete é só um exemplo do que tem sido nosso cotidiano.
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A vida anda cheia de meias porções, de prazere s meia-boca, de aventuras pela metade. A gente sai pra jantar, mas come pouco.
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Vai à festa de casamento, mas resiste aos bombons.
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Conquista a chamada liberdade sexual, mas tem que fingir que é difícil (a imensa maioria das mulheres continua com pavor de ser rotulada de 'fácil').
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Adora tomar um banho demorado, mas se contém pra não desperdiçar os recursos do planeta
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Quer beijar aquele cara 20 anos mais novo, mas tem medo de fazer papel ridículo.
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Tem vontade de ficar em casa vendo um DVD, esparramada no sofá, mas se obriga a ir malhar. E
por aí vai.
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Tantos deveres, tanta preocupação em 'acertar', tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação...
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Aí a vida vai ficando sem tempero, politicamente correta eexistencialmente sem-graça, enquanto a gente vai ficando melancolicamente sem tesão...
Às vezes dá vontade de fazer tudo 'errado' ? deixar de lado a régua, o compasso, a bússola, a balança e os 10 mandamentos.
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Ser ridícula, inadequada, incoerente e não estar nem aí pro que dizem e o que pensam a nosso respeito. Recusar prazeres incompletos e meias porções.
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Até Santo Agostinho, que foi santo, uma vez se rebelou e disse uma frase mais ou menos assim:'Deus, dai-me continência e castidade, mas não agora'...
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Nós, que não aspiramos à santidade e estamos aqui de passagem, podemos (devemos?) desejar várias bolas de sorvete, bombons de muitos sabores, vários beijos bem dados, a água batendo sem pressa no corpo, o coração saciado.
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Um dia a gente cria juízo. Um dia. Não tem que ser agora.
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Por isso, garçom, por favor, me traga: cinco bolas de sorvete de chocolate, um sofá pra eu ver 10 episódios do 'Law and Order', uma caixa de trufas bem macias e o Richard Gere, nu, embrulhado pra presente. OK ? Não necessariamente nessa ordem.
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Depois a gente vê como é que faz pra consertar o estrago.
(Leila Ferreira)
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Leila Ferreira é uma jornalista que adora colecionar histórias das loucuras e das manias femininas. É autora do livro Mulheres: Por que Será que Elas...?,

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