"Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!"
Florbela Espanca

18 de abril de 2009

A MULHER LIVRE? (POR, ANA MARQUES GASTÃO)


leila diniz
uma mulher realmente livre

Já se passam cento e um anos do nascimento de Simone de Beauvoir (1908-1986) - emblemática figura do feminismo, da literatura e do pensamento franceses -, fala-se mais da companheira de Sartre e da singular "relação aberta" deste casal lendário do que da intelectual; da sua sexualidade do que do relevante legado romanesco, memorialístico, filosófico e ensaístico.

O livro de Hazel Howley, Tête-à-Tête.Beauvoir et Sartre (Grasset, 2006) - já disponível em Portugal -, confirma o interesse voyeurista do público e dos investigadores sobre a tão cobiçada quanto escarnecida relação anti-convencional de um casal que jamais se casou. Sartre e Beauvoir, respeitando o pacto amoroso vitalício imposto pelo primeiro e aceite pela segunda, só se separarão na morte, não obstante a contingência das ligações, mais ou menos apaixonadas, mantidas com terceiros e seus perversos efeitos colaterais.

Tendo atravessado quase toda a história do século XX, Simone de Beauvoir queria ser o "Castor de guerre", segundo a expressão de Danièle Sallenave - que acaba de lhe consagrar uma biografia -, e escolheu um destino, movida pela necessidade de fazer "triunfar a liberdade sobre a necessidade".

Nunca teve, porém, lê-se em La Force des Choses (1963) a ilusão de transformar a condição feminina - o que, em grande parte, conseguiu -, porque considerava que esta dependia do "futuro do trabalho no mundo", tendo, por isso, evitado "encerrar-se naquilo que se chama feminismo". Se foi existencialista, foi-o à sua maneira, divergindo do autor d'A Náusea quanto a um ponto essencial; a doutrina da justificação: "Não foi porque ela escolheu Sartre que ela se tornou Simone de Beauvoir, foi por se ter tornado Simone de Beauvoir que ela escolheu Sartre", sublinha Sylvie le Bon de Beauvoir.



Se, para o autor de O Ser e o Nada, não havia salvação possível, Beauvoir, salienta Éric Deschavanne, acreditava, como forma de justificação, na criação, na "possibilidade de inventar a vida" e de, para ela, conquistar um sentido", considerando que "as mulheres, mais do que os homens, têm necessidade de ter um céu sobre as suas cabeças."

O Segundo Sexo (1949), escrito na perspectiva da moral existencialista, valeu-lhe, todavia, a condenação da maior parte dos intelectuais conservadores franceses, homens e mulheres - católicos, protestantes, comunistas. Ingrid Galster recorda-o, em Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir, lembrando que os ataques visavam também Sartre, autor "perigoso" desde Le Mur. Vendo uma mulher, à beira de entrar na década de 50, referir-se à "sensibilidade vaginal", ao "espasmo clitoridiano" e ao "orgasmo masculino", não só Camus ficou em fúria, como muitos outros homens. O católico François Mauriac escreveria, então, numa carta a Roger Stéphane, esta frase repugnante: "Aprendi muitas coisas sobre a vagina e o clítoris da sua patroa."


Estavam, em causa, na época, temas tão polémicos como a liberdade da mulher, a maternidade, a educação, o parto sem dor, o aborto, o adultério, a frigidez, o divórcio, a prostituição, respondendo O Segundo Sexo às inquietudes do momento com o célebre aforismo: "Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres." A pensadora de Pour une Morale de l'Ambiguïté (1947) não só é a primeira a elaborar uma crítica sistemática de Freud no âmbito da teoria feminista, como a defender que a feminilidade tem origem em estruturas sociais, antecipando, em mais de 20 anos, aquilo que viria a ser uma das questões centrais do feminismo da segunda vaga: igualdade/diferença.

La Vieillesse (1970), livro no qual Simone analisa, como poucos, o envelhecimento, dir-se-ia um prolongamento das suas ideias filosóficas e políticas. Não se esqueça, porém, a obra romanesca da autora de A Convidada (1943), de O Sangue dos Outros (1945) ou de Une Mort très douce (1964) e a notável criadora de Memórias de Uma Menina Bem Comportada, A Força da Idade,A Força das Coisas e Balanço Final (1958-1972).

No estilo rigoroso, por vezes impiedoso, que adopta no romance, Simone de Beauvoir escreve sobre mulheres de espírito delirante, convidando-nos, segundo Kristeva, a "singularizar a política e a politizar o singular". É impossível não a ver como a impulsionadora de uma mutação antropológica que esteve à frente do seu tempo ao encarnar uma filosofia política da liberdade interior.

post original de:ANA MARQUES GASTÃO
izilgallu

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