"Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!"
Florbela Espanca

27 de julho de 2009

AS MENINAS DEUSAS DO HIMALAIA (ADÍLIA BELOTTI)

Uma deusa viva. Fácilimo de digitar. Quase impossível de compreender, tão ocidental meu olhar sobre o mundo. Uma deusa viva não parece uma deusa, nem é uma lembrança contemporânea de uma divindade, nem é reencenação de um ser divino. Uma deusa viva, É. Simples assim. Difícil de compreender. Ainda mais quando essa “deusa viva” é uma menina, extraída à fórceps da infância, colocada num trono, enfeitada de jóias, reverenciada como a reencarnação de uma das deusas mais impressionantes do panteão hindu, Durga, “aquela que mata o leão”, encarregada pelos deuses de enfrentar e derrotar os demônios que ameaçam o equilíbrio do universo. A mais poderosa das “grandes-mães” do hinduísmo.

O festival de Durga, Dashain, é chamado “a noite negra” e é uma das mais importantes manifestações religiosas do Nepal. É durante uma dessas celebrações, que a “deusa viva”, a Kumari, é escolhida e sua coragem, testada.

Kumari, na língua do Nepal, quer dizer, virgem, menina-virgem. No Nepal, onde hinduístas e budistas convivem há séculos, essas meninas-virgens são escolhidas entre a população budista, por volta dos 4 anos. A vida delas como kumaris é curta: assim que menstruam ou tão logo manifestem qualquer sinal de “mortalidade”, como alguma doença ou ferimento que envolva muita perda de sangue, elas são destituídas do seu cargo divino e voltam a ser meninas comuns. Mas com uma pequeníssima diferença: casar com uma ex-kumari dá azar. Agora, páre para pensar no quanto o casamento das meninas é importante para as famílias na Índia. E agora já dá para imaginar que o destino de uma ex-kumari, adulta, pode ser feito de solidão ou de miséria…

Mas isso não deve ainda nos entristecer porque o governo do Nepal, anda tomando medidas para garantir às ex-meninas-deusas seu quinhão de felicidade mortal.

O Nepal, aliás, é uma região multi praticamente tudo: multicultural, multireligiosa, multiétnica. A maioria da população é hinduísta ou budista. Tanto uns quanto outros, ainda que de formas distintas, cultuam uma infinidade de deuses e deusas, incarnações e manifestações das forças divinas, reverenciadas e adoradas sob a forma de estátuas, imagens, pinturas…e “deusas vivas”, as kumaris.

O culto das kumaris é comum no vale de Katmandu, onde cada cidade possui a sua própria menina deusa, selecionada entre as garotas de 4 e 5 anos da casta “shakya”, uma das mais baixas e, portanto, mais pobres da região. Para ser escolhida pelos sacerdotes encarregados do ritual, a menina precisa possuir os 32 atributos da perfeição, originalmente associados à deusa Durga quando era, ela prória, uma menina: saúde perfeita, corpo sem marcas, olhos negros, grandes e expressivos, dentes impecáveis, voz aveludada, braços longos, cabelos negros, brilhantes e lisos, pés e mãos delicados.

Mas ser bela só não basta. A garota precisa mostrar desde o início sua valentia e uma imperturbável serenidade. Á luz das velas, na “noite escura”, a menina precisa ficar impassível diante dos dançarinos com máscaras monstruosas ou fantasiados de leões que tentam amedrontá-la. Apenas as que resistem sem piscar são consideradas encarnações verdadeiras da deusa e podem sentar-se no trono da deusa, decorado com gigantescas figuras de leões.

O poder dessas meninas é, ao mesmo tempo, imenso e nenhum. São encarregadas de abençoar anualmente o próprio rei do Nepal e, dizem, seus pés nunca podem tocar o chão, apenas andar sobre tapetes vermelhos. Por outro lado, não podem afastar-se do Nepal, nem conviver com as meninas de sua idade e vivem nos templos, entre cerimônias e rituais.

Mas o que acontece se a kumari se recusa a desempenhar seu papel?

Sajani Shakya, kumari de Bhaktapur, aposentou-se, leio nos jornais. Com 11 anos, a menina, que já havia provocado a indignação dos sacerdotes por ter viajado para os EUA, onde foi a personagem principal de um documentário, decidiu voltar à vida normal.

Será? Segundo a BBC, de Londres, o pai de Sajani parece preferir que a filha participe de outro ritual: um casamento simbólico que asseguraria à jovem fertilidade e um destino menos solitário. Mas para isso, ela precisa se “desvestir” da sua divindade.

“Quando deixar de ser deusa, quero ser fotógrafa”, teria dito a menina-deusa. Tomara. Boa sorte, pequena deusa!

(Fonte: Blog Toques de Alma, de Adília Belotti)

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