"Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse a chorar isto que sinto!"
Florbela Espanca

11 de julho de 2008

VITTORIA COLONNA - MARQUESA DE PESCARA I

A contribuição feminina à criação poética vem despertando crescente atenção. O tema, em si, está longe de ser desconhecido, mas hoje o que procuram com insistência alguns setores da crítica é buscar, na expressão poética, características da condição feminina. Não cabe aqui avaliar os pressupostos teóricos dessa busca, nem de lhe fazer um balanço. O que agora se pretende é somente relembrar um exemplo que pode ilustrar aspectos da questão. Exemplo de poesia criada com afirmação da mulher, em circunstâncias a ela aparentemente desvantajosas. É o que se dá na obra de uma das vozes da poesia renascentista italiana: Vittoria Colonna (1490-1547).
Nascida em uma das mais ilustres famílias romanas, casada, ainda jovem, com o marquês de Pescara, Vittoria voltou-se para a poesia com cerca de trinta anos, pouco depois da morte do marido. Em seu cancioneiro, de inspiração petrarquista, além da evocação do esposo, há o canto da fé cristã. Pois Vittoria, desde cedo fiel à prática religiosa, ao enviuvar adotou existência ainda mais austera.
Um cancioneiro do século XVI nascia em tempos das acirradas controvérsias teológicas abertas pelo movimento luterano. Mas à altura em que surgiam as poesias sacras de Vittoria, por volta de 1540, essas controvérsias a muitos pareciam ainda remediáveis. Eram numerosos, na Itália e na Europa, os que esperavam que a reconciliação viesse a dar-se, para além de formulações teológicas, pela conversão sincera de todos o cristãos e pelo reconhecimento da unidade no essencial da fé. Esse era o pensamento corrente em diversos ambientes italianos, em particular o dos círculos erasmistas, simpáticos às idéias difundidas em Nápoles por Juan Valdés. Vittoria neles encontrou muitos que acreditavam possível a reconciliação em uma Igreja renovada.
Assim pensavam até mesmo prelados, como o cardeal inglês Reginald Pole, que estando na Itália por volta de 1540, foi para ela um interlocutor excepcional. A esperança de reconciliação reacendeu-se quando teólogos, católicos e luteranos, concordaram em reunir-se na Alemanha, em Ratisbona. Nessa reunião se delinearam, laboriosamente, fórmulas de acordo, publicadas em 1541, por ordem de Carlos V. O acordo, porém, deixava abertas questões importantes. A principal delas dizia respeito à doutrina da justificação, ou seja, das relação entre a fé e a salvação. A justificação sola fide, sustentada pela teologia luterana, concebia a justificação como fruto exclusivo da graça da fé, da confiança nos méritos de Cristo, que afastavam o castigo do pecador, embora não seu pecado. A essa visão se opunha a justificação fide et operibus, tradicionalmente identificada com a doutrina católica, que concebia a justificação como obra da graça que purifica o pecador, pelos méritos de Cristo, levando-o a crer e a praticar boas obras.
Esse ponto de discórdia entre os cristãos não aflora, porém, na lírica sacra de Vittoria Colonna. Como se verá no soneto aqui apresentado, sua poesia, embora dominada pelas imagens de Cristo e do pecador, inspira-se no que é comum aos cristãos: a fé em Cristo salvador. Era a convicção de Vittoria; eram as esperanças de seus tempos, os tempos de Ratisbona. Assim, as reflexões sobre a justificação ainda podiam fazer-se com a liberdade apregoada pelo aforisma de inspiração agostiniana: in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus charitas. Esse princípio, teologicamente conciliador, é o que se faz presente nesta poesia sacra.
É certo que Vittoria esteve convencida da necessidade de reforma eclesiástica e que alguns de seus amigos desse período aderiram, depois, à confissão luterana. Mas é igualmente certo que, para ela, a reforma da Igreja podia e devia fazer-se sem ruptura entre seus membros. Foi o que a levou a amparar os iniciadores de um dos mais austeros movimentos reformadores da Igreja renascentista: o dos capuchinhos. que graças à sua proteção puderam, com aprovação de Roma, retomar integralmente a pobreza evangélica do primitivo ideal franciscano e transmitir esse ideal a vastos setores da sociedade. Estamos, como se percebe, diante da convergência de fé, teologia e poesia. Convergência infreqüente (Juan de la Cruz é caso excepcional), sobretudo em vozes femininas, como a de Vittoria Colonna. Teóloga, Vittoria? Ela própria assim jamais terá reivindicado esse título, apesar de suas reflexões sobre a Igreja. Outro o título que ela conquistou: o de poeta. Para além de posições teológicas é sobretudo pela criação poética que nela se expressa a mulher, a cristã e a artista.
Mas a teologia de então não seguiu o caminho da poesia. Ante a insuficiência do acordo de Ratisbona, outra tentativa de conciliação doutrinal, a última, ocorreria na dieta de Augsburgo, cuja fórmula final, o "Interim", de 1548, chegou a mostrar-se aceitável. Logo, porém, sobrevieram receios tanto entre os príncipes luteranos (que viam nessa fórmula instrumento político de Carlos V), quanto nos ambientes católicos (que a entendiam excessiva nas concessões doutrinais).
Vittoria não chegou a testemunhar a efêmera reconciliação. Morrera um ano antes, no início de 1547. Morrera, como havia desejado, entre as beneditinas de Roma, amparada até o fim por amigos, entre os quais o grande Michelangelo.
A reconciliação que não chegou a ver, Vittoria Colonna conseguiu fazer vislumbrar em sua poesia sacra. Obra que hoje se impõe não só pelo lugar que ocupa na lírica italiana do Renascimento. Em nossos dias, quando se ressalta a contribuição da mulher à criação artística, como de início se dizia, a lírica de Vittoria Colonna assume nova dimensão. Nela se acha um raro exemplo de voz feminina que alcança a criação artística fazendo reunir-se a fé, a reflexão teológica e a inspiração poética. (fonte http://www.hottopos.com/)

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